Primavera
Pensavas que isto ia ser telenovela, não era? Tantos aninhos a explicar aos teus amigos de sangue para eles terem calma, tu até linhas lido o Roth, até citavas de cor e cheio de lirismo aquele aforismo do Mancha Humana, de que essa ideia de que as coisas têm um princípio, um meio e um fim é uma parvoíce desmontada desde os gregos. Tantas vezes o disseste, com o teu cinismo de melancólico sereno, controlado, etc. Já lá estavam os sinais todos, não era? Mas só agora te apercebes. Querias ter sempre tudo controlado, nada de levantar ondas, manter a tua vida encaminhada e mais não sei das quantas. E depois foste percebendo que estavas a ficar assim, mentiste não sei quantas vezes a ti próprio, mas continuaste a acreditar que a tua história ia ser daquelas onde só os crescendos ecoam. Esqueceste-te do primeiro mandamento do escritor, não é? De que a vida não é literatura. E não fizeste nem uma, nem outra. Olha que bonito serviço fizeste tu, sim senhora. Caíste uma vez e ninguém viu. Achaste que tinhas aprendido. Por isso voltaste a meter-te em cima do muro, para ver o que é que acontecia. E agora chegou o mês de Junho, a primavera, as andorinhas em mais não sei das quantas. E tu achavas que ias ter um bocadinho de paz, não era? Estavas a precisar e tudo. Já estavas a preparar as trelas para ires passear os cães todos os dias, olhar para o Douro e ficares lá com as tuas ruminações, sossegado, quieto a um canto, à espera que a vida te caísse no colo ou o raio que o parta. Estragaste todas as tuas qualidades e agora ficaste assim, num homem de um tema só. Pois é, meu pavão. Agora choras porque a vida foi injusta para ti, não é? Mas foste tu que lhe deste as cartas para ela poder ser injusta. E ela cobrou-te. Para quem leu Cioran tão novo, chegaste a adulto demasiado ingénuo. Agora amanha-te.