Traição à Memória
Grande parte do quotidiano de um anancástico não é assim tão sibilino ou diverso do trabalho da ciência da História. É roer o filão dos dias, palmatoar a memória para analisar as causalidades cumulativas, os erros, os boatos, as decisões tomadas sem todos os dados, decretos sustentados e forçados por sentenças prévias, etc., e, no fim do dia, fazer levantar o voo da coruja de Minerva, construir uma narrativa que destrince em que minas explodiu o futuro que é agora um uma ideia dolorosa, um pretérito do condicional. Mas quando o encanecer das narrativas se torna num recauchutar de ciclos de colapso, em que o passado vai pesando como chumbo num círculo de fogo, há um momento em que esse urdir de cacos da memória deixa de ser sobre o novelo do tempo, e passa a ser sobre nós — sobre as nossas gralhas cheias de bolor, as nossas fraquezas e a sobre a nossa impotência de preencher as lacunhas de um passado que cisma em regressar com as mesmas agulhas e os mesmos sestros.
Falhar depois de ter estado às portas do abismo, depois de vergastar o próprio corpo com culpas, pecados, e redenções de vidro, depois de prometer à própria alma que um baque feito daquele temor não mais voltará a ser envasilhado neste corpo, porque os ossos não aguentem mais esta depressão e esta abulia, que tamanha falha moral jamais pode voltar a cercar-nos o corpo, voltar a falhar já não se resume à culpa, à falta de perícia ou à depressão. Não. Quando um homem volta a beber uma colher de chá envenenada pelo colapso, sobretudo depois de se ter confrontado, finalmente, com a bílis que explicava todo o seu passado, voltar a entornar a vida é quebrar o omertà que se fez com o próprio sangue, derruir as crenças mais profundas e trair o que não pode ser traído. E por isso é justo que a vida o castigue.
Não. Quando um homem volta a falhar depois de se levantar do colapso que até o fez , quebrou a omertà que fez com o seu próprio sangue, derruiu as suas crenças mais profundas. E traiu o que não pode ser traído. É justo que a vida o castigue.
E o castigo é sempre servido com balas delgadas de manteiga. Nunca é um crime de sangue, mas um sequestro da mente, uma laguna de ervas daninhas virulentas num mar de aparentemente normalidade, uma dessas violências que nem quem a sofre é capaz de a explicar. Esse é o castigo dado aos orgulhosos incapazes de sustarem as suas próprias ambições e os seus próprios desígnios.
Porque mais do que qualquer vitória, o que eu contava estar a dizer por estes dias, a escassas horas daqueles momentos em que o telúrio dos minutos calça o julgamento de uma vida, e passado um ano do confronto que tive com a minha própria história e da descoberta do vestíbulo das malsãs, era poder dizer que, olha, pode não ser muito, até pode ser pouco, mas eu mudei. Melhorei, tornei-me num homem mais saudável e menos solitário, não cometi os mesmos erros, não fiquei dias paralisado a olhar para um muro de novelos encardidos sem saber para onde apontar as minhas armas, sovei as fraquezas do meu sangue, levantei ferros até à exaustão para poder calar as minhas sinapses durante a noite, derrotei a sina e o vezo de só conseguir desvelar o regaço das minhas vontades em cima do naufrágio, etc., etc., etc.
Mas como todos os obcecados com o seu destino, não fui senão similar ao que sempre fui. Voltei a ser derrotado no processo, a roer o ossos dos dias a forjar narrativas disto e daqueloutro, e a ouvir os ecos que sempre voltam para nos caçar. É duro, mas a minha vida é tal qual a História: não progride, não tem nenhum desígnio transcendente, e o sofrimento que vai mantendo a esperança numa ideia fixa que não vem culmina tão somente num solitário gemido ante a anarquia.
E o efeito mais pérfido e profundo que uma obsessão tem sobre uma vida é tornar-nos num refém desse grito que não damos. Dessa falta de vivências que nos enclausura num tear que vê no orgulho do sucesso a compensação por ter sido condenado ao murmúrio dos dias indistintos, ao cibo da existência silenciada. É daí que vem o sórdido prazer pelas vésperas e pelos dias em que se é obrigado a abusar do corpo, da mente, em que se jogam futuros, heróis e vencidos; pelos segundos em que se calça toda uma vida, de forma justa ou injusta, isso pouco importa, e em que se chega a ter um absurdo desejo de morrer. Porque nestas vésperas, em que o influxo da alma se recorda da visão que a trouxe até aqui, as coisas mortas deixam de rodar em torno de si próprias; o cansaço deixa de ser um sofrimento seco e a solidão parece desaparecer, nem que apenas por momentos. São os segundos de uma ilusão de normalidade que acaba sempre mastigada como pedras pelo retorno da culpa e da consciência da fraude.
Tal e qual os Generais de Roma, que só aceitavam sair da Batalha ora vitoriosos, ora decepados, também eu preferia ter-me tornado num derrotado honrado, porque o que mais custa, como sempre, e como tantas vezes escrevi nestes diários, que se tornaram uma tautologia dos meus colapsos, não é a derrota, é o estar às portas da humilhação, é o ter mais nojo dos espelhos do que o baque que está prestes a abater-se sobre mim.
Mas há homens que para continuarem a viver têm de narrar a sua vida como se estivessem a vê-la à distância. E que por isso se limitam a jogar pelo prazer de jogar e pela redenção através da tragédia.
Que assim seja, que é tudo o que me resta. Götterdämmerung.