Elizabeth Grant
Mais do que misteriosa ou sensual, brocardos repetidos até à exaustão para explicar o que Lana veio fazer ao Primavera Sound, o mais enigmático nome da pop da última década sempre foi para mim o sopro riçado de uma melancolia serena, domada e consciente de que é preciso evitar o abismo final.
Lana Del Rey, ao contrário de muitos nomes desta onda feminina que invadiu a música popular nos últimos dez anos, do indie ao folk, de Laura Marling a Alice Phoebe Lou, não leva multidões para os seus concertos à custa da magnitude da sua voz ou pela sua capacidade de manter um diapasão estável numa actuação ao vivo. Mas terá de haver um motivo para tanto burburinho à volta de uma figura que não parecia destinada ao estrelato comercial, que não tem a superficialidade literária de uma estrela pop que agrada a tudo e todos, e que não faz cenhos serem erguidos pela fortuna das suas cordas vocais.
Talvez seja aquela postura gélida e pastoral, aquele teatro de sombras em que uma poeta do trágico se coloca voluntariamente fora do mundo e se recusa a bradar aos céus as gretas da sua alma e as gotas de malsãs de uma América e de um mundo em que caminhamos sempre para a infelicidade e para a distopia colectiva, mas usa e abusa das vinhetas da memória e das cepas da misantropia para nos cantar o silêncio dos fantasmas com a fragilidade de quem se apresenta a si e à sua obra sem adornos e sem fogos-de-artifício.
E talvez tenha sido isso que se passou na passada sexta-feira. Eu não estava lá, mas vi tudo cá de casa. A levitação e a magia nos olhos ébrios do público, a intimidade sem pose de quem ouvia os vagidos do palco como se estivesse enrolado nos lençóis da sua cama, a distimia transformada em doçura, as ruminações dos sintetizadores barrocos e das guitarras movidas a betão armado, qual wall of sound recauchutado em paredes de melancolia húmida e que por isso nunca se cristaliza. E depois a voz, aquela voz, parada, imaculada, ora cândida, ora autoritária, tão querida a quem não quer apenas liderar um momento de excentricidade, qual rebelde sem causa e mulher idealizada pelo macho americano, mas antes guiar uma verdadeira atmosfera e uma consciência num mundo em que só a firmeza da candura pode derrotar uma mitologia que se barricou entre o vazio do hedonismo que quer viver o mundo inteiro num instante dopaminérgico (“live fast, die young”) e a frustração de parte de uma nova geração, essencialmente masculina, que enche os seus dias com raiva da felicidade e liberdade alheia (“Look at you kids with your vintage music / Comin' through satellites while cruisin' / You're part of the past, but now you're the future”).
Lana Del Rey não se limita a contar a sua própria história, íntima e pessoal, que, aliás, tão bem lhe mostrou os perigos daquelas duas mitologias modernas (“He hit me and it felt like a kiss”). Mas antes enceta aquele confessionalismo que trinca todas as esferas da vida, do manifesto autobiográfico à ética da vida pública e que durante décadas foi propriedade dos mestres masculinos — do primeiro ao último álbum, as influências de Cohen são patentes na literatura e na pastoral sinfónica que a caracteriza (“I ain’t no candle in the wind (…) Don’t look too far, right where you are, that’s where I am / I’m your man”). E fá-lo para encabeçar um movimento contra a alienação de uma geração esgotada de tantos estímulos e contra os perigos políticos de mundo um roda livre, sem medo de demonstrar uma visão e uma gesta próprias, porque sabe muito bem que o sonho americano não chega a todos, nem tão pouco à maioria (Is it the end of an era? / Is it the end of America? / No, it's only the beginning / If we hold on to hope, we'll have a happy ending”).
Andará por aqui o motivo pelo qual Elizabeth Grant é um daqueles fenómenos violentos, duradouros, vorazes, unificadores de gostos e gerações. Não por ser a melhor cantora do seu tempo ou por levar estádios a um êxtase à outrance. Mas porque é literária, profética, magnética e sibilinamente hermética. E porque sabe impor como ninguém aquele último golpe que só a estética feminina pode dar, onde não se pode evitar ficar banzado com aqueles olhos de tubarão, feridos e fatais, ora plácidos perante o vazio da sua era, ora violentos perante as ameaças ao desafogo dos seus prantos (“Hope is a dangerous thing for a woman like me to have / But I have it”). Como se o seu rosto não pudesse ter outros contornos senão aqueles que ela nos apresenta nas fotos oficiais: febris, taciturnos, pacatos, mas fulminantes, como quem tartamudeia um eis-me aqui, inteira e descarnada; frágil, mas atenta; quieta, mas implacável.
Foi isso que vimos na sexta-feira, com aquela silhueta angelical a encher todo um palco só porque lá apareceu, impermeável aos desígnios do sangue, fleumaticamente ríspida como só os magoados no que de mais profundo têm na sua personalidade sabem ser, e com aqueles cabelos tristes, lisos e cintilantes a acompanhar toda uma postura corporal que tem tanto de dramático como de imóvel e desajeitado perante a cólera liceal pintalgada na sua literatura.
Porque a música popular ainda pode ser um bálsamo neste mundo em que todos sagram, mas em que já ninguém vê o encarnado venoso ser sovado no chão que cada vez mais nos escapa. E Lana Del Rey é esse bálsamo.